quinta-feira, 29 de maio de 2014

dose (in)falível

Eu o observava de longe, mas não falava nada. Só observava.

*

Ele era deprimido. Abria aquela gaveta toda noite antes de dormir e tomava um comprimido azul. Logo dormia. Quando não tinha, eu o via perambulando pelo quarto como um sonâmbulo sem nem saber o que está fazendo na terra. Perambulava e perambulava, coçava a cabeça e de vez em quando olhava para o teto e respirava fundo. Eu tinha muita vontade de saber o que se passava em sua mente. O quarto era um cenário ermo e misterioso com luzes amareladas bem gastas, as vezes falhava e fazia barulhos como se quisessem queimar, as paredes eram descascadas e com uns rabiscos de giz de cera, provavelmente fora seu querido sobrinho. Não havia nada de extraordinário em seu quarto, não conseguia enxergar um objeto de distração que pudesse fazê-lo dar um sorriso. Nunca nem se quer vi os dentes dele. Sempre que conversava no telefone era com um tom de voz baixo, meio tímido e intimista. Pelo visto o telefone não era um objeto de seu interesse. A única coisa visível era seus livros de capas amassadas e desgastadas em seu único e minúsculo criado-mudo no canto do dormitório, provavelmente lá se encontrava textos de Goethe, Tolstói e Shakespeare.
O que eu via? Via um ser solitário e doloroso. Sentia alguma dor interna ou externa - quiçá as duas, ninguém sabe - por isso tomava aqueles comprimidos azuis. Sua rotina era normal, trabalho e casa. Os fins de semana se resumiam em pizza e cerveja. Sozinho. Notei que de vez em quando apenas sua irmã com seu sobrinho vinham lhe fazer uma visita. Realmente a vida deste rapaz não era nada agradável e saudável. Confesso até que já o vi chorar algumas vezes deitado como um corcunda com frio em sua cama barulhenta e enferrujada. Triste. Pensando bem essa é a palavra que o resumia.

*

Certa vez me distrai por uns dias, pois eu tinha que cuidar da minha vida também, resolver umas pendências, logo me descuidei do rapaz. Quando parti para observá-lo novamente, percebi que aquela alma já não estava mais lá. O corpo era como se tivesse necrosado de tristeza, desilusão e sofrimento - que eu não sei de quê -. Doeu. A primeira coisa que eu tive em mente foi: "Liberdade". Não sabia se ficava feliz ou triste com a situação. Afinal, o sentimento de liberdade é algo bom e saudável para alguém! Mostra que é independente em suas opiniões e vontades. Sabe o que quer e o que não quer, pulso firme. Mas, e para aquele rapaz? Será que era bom? Os dias para o jovem passava tão demorado que muitas das vezes até eu ficava entediado. Nada acontecia, era uma mesmice sem fim. Talvez se eu mesmo tivesse uma vida dessas, iria querer encontrar o portão da liberdade o mais rápido possível. Cada lágrima que ele chorava podia (e devia) significar algo. Dizem que as lágrimas são somente a tradução do que estamos sentindo por dentro. Além do mais, o que me parecia quando eu o observava era que ele vivia em uma constante panela de pressão. Ansioso e depressivo, os seus sapatos eram desgastados de tanto que perambulava sem destino por ruas estreitas e sem saídas. Era difícil falar de si mesmo, a única vez que eu o ouvi falando foi algo mais ou menos assim: "a obrigação de viver é que me mata!".
Enfim, quando entrei naquele quarto novamente senti uma sensação pesada e desconfortante. Não queria ficar lá nem mais um minuto. Aquilo me deixou com náuseas e me causou um rebuliço interno só de pensar na linha digressiva da vida do rapaz e do que pudera ter acontecido. Saí esmorecido e quando dei de mim já estava há dois quarteirões longe daquela casa. Parei por um momento em uma rua para respirar e tentar entender porquê a vida de algumas pessoas é tão ingrata e inconsequente. Encostei-me em um carro parado e calmamente ia respirando para que meus pensamentos voltassem ao lugar. Quando finalmente retornei ao meu estado de espírito, coloquei friamente minhas mãos na cabeça em um tom reflexivo e logo cheguei a conclusão de que o sofrimento é algo que nos mata, se não nos mata, nos enfraquece. E, infelizmente, disso nós não temos nenhum comprimido azul que cure ou que nos faça esquecermos.

meninos suicídas

Um acabar seco, sem eco,
de papel rasgado
(nem sequer escrito):
assim nos deixaram antes
que pudéssemos decifrá-los,
ao menos, ao menos isso,
já não digo... amá-los.

Assim nos deixaram e se deixaram
ir sem confiar-nos um traço
retorcido ou reto de passagem:
pisando sem pés em chão de fumo,
rindo talvez de sua esbatida
miragem.

Não se feriram no próprio corpo,
mas neste em que sobrevivemos.
Em nosso peito as punhaladas
sem marca - sem sangue - até sem dor
contam que nós é que morremos
e são eles que nos mataram.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 2 de maio de 2014

soneto da dor

sinto-lhe mais longe
como o vento que assopra,
te assopras para longe de mim
como um grande e forte vendaval.


ó ventania, se tu soubesses o quanto me magoa,
não o leve para longe de mim,
não traga a solidão profunda em tempos serenos,
não quero arder na melancolia da dor!


ó tempo, não cure, só me leve de volta onde parei;
estas tristes purpurinas viraram cinzas sem cor,
por mim não tem mais valor,
ó Inês, o amor é um fogo que arde sem se ver;


necessito atravessar essa ponte sem pressa,
para que eu alcance o sentimento
que a astuta ventania levou de mim.