hoje foi um dia normal para mim, mas algo inusitado aconteceu. lembrei de um fato que me ocorreu num passado bem distante enquanto eu dava um passeio de ônibus pela cidade. como o caminho é longo, sentei-me em um espaço vazio perto da janela e comecei a imaginar a minha vida passando em alguns segundos, tudo o que já me aconteceu e o que não me aconteceu. e então foi aí que me lembrei dela. seria desonesto da minha parte dizer que eu mal lembro dela nos meus dias, mas, no momento em que me encontro, velho e enrugado, com dores nas costas e tosses constantes, a minha vida dá um sentido diferente pras minhas experiências, digamos que, trágicas e, consigo me recordar bem, apenas com um sentimento de que eu vivi algo e em algum momento da minha vida eu iria entrar em um ônibus urbano e me relembrar delas, criar teorias, quem sabe, ou somente lembrar mesmo.
as voltas que a vida dá são engraçadas, mas a única coisa que eu tenho certeza é que as voltas daquele ônibus que peguei foram enormes e eu me entendiei demais nele. enfim, voltemos. estou em casa e resolvi relatar uma parte de minha história para alguém. fosses o escolhido. pois bem, eu não sou um bom narrador, não relato as ideias muito bem, pois tenho uma mente péssima e distorcida de todos os fatos, resultado de muitos medicamentos por anos. mas, ela era linda. como era.
ela partiu e partiu para bem longe, igual como a música de Tim Maia, da qual coloco para tocar em minha vitrola enquanto tento narrar um pouco -se for possível - da beleza dela.
se me permitir, eu preciso acender o meu charuto e me sentar nesta velha poltrona. (...) cá estou eu, que fase. foi há muitos anos trás, eu tinha os meus vinte e poucos (e felizes) anos. conheci-a em um posto de gasolina. não, amigo, me desculpa. eu não quero parecer uma narrativa de Gregório Duvivier, eu sei de todos esses textos e coisas modernas por aí, mas minha alma é de velho. talvez meu relato seja parecido com o dele. e sim, foi em um posto de gasolina. eu estava na estrada, parei para comprar algo para comer e encher o tanque. aproveitei pra comprar uns cigarros também. lá estava ela dentro da loja debruçada no balcão com um shortinho jeans e um óculos escuro também escolhendo um cigarro. pareceu-me que ela estava se importando com marcas, talvez estivesse procurando o mais "light", acho que ela queria manter aquela cinturinha fina. tinha longos cabelos escuros, não era nada demais, porém algo me chamou atenção. então cheguei nela e perguntei se precisava de ajuda, já que o atendente da loja de conveniência estava mais preocupado em ouvir os noticiários da televisão preta e branca do ambiente. logo, ela me abriu um sorriso lindo, disse que queria fumar mas não conhecia as marcas, eu, gentilmente, perguntei se ela queria começar a fumar comigo lá fora para experimentar do meu, se gostasse..... pois bem, fechou a cara. já logo pensei que fiz algo errado, em uma sociedade machista em que vivemos, ainda mais naquela época, temos um jeito meio escroto com as mulheres, mas a diferença é que ela era independente, transbordava rebeldia e juventude. mostrava-se uma mulher irreverente e decidida para aquela época, acho que foi isto que me atraiu logo de cara. diante este parênteses enorme que criei, ela demorou um pouco de responder o meu pedido, mas aceitou. começamos a conversar e me interessei pelas histórias dela e por ela, a sua independência era vista de longe e eu observava com destreza todos os detalhes e gestos. ela se articulava muito bem e conversava comigo sobre qualquer coisa, até que ela mesma teve a atitude impeta de pegar um guardanapo, escrever o telefone e o endereço e disse com os lábios carnudos e molhados, com um batom vermelho aveludado, não muito forte: "te encontro no hotel do km 76, é onde eu estou hospedada.". à princípio eu achei loucura, não acreditei que aquilo pudesse estar acontecendo. mas, ela era tão incrível que até sem jeito acabou me deixando, sua atitude, sua destreza e rebeldia me deixou perplexo, querendo conhecê-la mais e mais. em questões de segundos ela sumiu, tinha um carro velho, mas pareceu um possante de tão rápido que desapareceu. deu uns vinte minutos, saí do posto e continuei viagem, fiquei pensativo. até que decidi ir no hotel em que ela estava hospedada, não é que era verdade? cheguei lá, conversamos, tomamos vinho e lá logo transamos. foi a melhor transa da minha vida, ela me seduzia constantemente, eu só me via naquelas mãos macias dela, preso por completo naquele momento.
passamos a noite inteira transando, rolando um misto de transa e conversa, conversa e transa. até que mantivemos essa relação por um ano aproximadamente, ela costumava vir em casa, eu buscava ela nos lugares, eu almoçava com ela, ela me ligava de madrugada. enfim, me vi apaixonado da forma mais maluca e inusitada que possa ter acontecido. nós tínhamos uma relação boa e transávamos quase todos os dias, fiquei meio maluco de tesão naquela época, me sentia ninfomaníaco. a minha rotina era ela, comer e dormir, transar. não tinha mais o que fazer além disso. perdi o meu emprego, pois comecei a faltar. eu estava completamente louco e cego, eu vivia para ela e fazia as coisas só imaginando a hora que eu fosse vê-la sem roupa. planejávamos casar, ter filhos. queríamos ter um sítio no interior para irmos com as crianças no fim de semana, mas ela deixava claro que não iria fazer o almoço em nenhum dia.
tive as experiências mais loucas com aquela mulher, dei o melhor de mim e tudo o que eu podia. bebíamos, ríamos, íamos no cinema ver os filmes em cartaz, de vez em quando usávamos drogas, discutíamos, transávamos como louco e nos amávamos... pelo menos eu amava. eu tinha uma câmera-filmadora bem antiga da época, eu a gravava dançando para mim, gravava na cama, o nosso sexo, nua, vestida. calma. eu ainda tenho estas fitas!!! vou colocá-las. (...) pronto, olha só. ela era linda. ela dançava desta forma para mim, de vez em quando ela mesma se filmava. tinha o costume de gravar vídeos sem roupa pra mim e me mandava no meu trabalho em um envelope escrito: "urgente!!!" só para me deixar nervoso com medo de alguém pegar. mas aquela situação toda me excitava, aquele medo, aquela ansiedade me deixava ainda mais na mão dela. e vendo essas fitas, eu só sinto vivendo tudo isso de novo, um jovem com tesão pela vida, apaixonado da forma mais louca que possa existir.
enfim, até que chegou o momento que eu não esperava. ela sumiu, ela partiu. e eu não sei até hoje o que aconteceu... tentei procurá-la em todos os lugares, não encontrei. não tinha contato com a família dela, pois era do interior, de uma cidadezinha bem longe e pequena, não os conheci, parou de atender às minhas ligações, fui à casa dela e não tinha mais ninguém. a loja em que ela trabalhava também não estava mais. perguntei para conhecidos, amigos e todos disseram que haviam visto no mesmo dia que eu a vi pela última vez. pois bem, partiu. até hoje não sei onde ela está, o que aconteceu. só sei que me deixou uma lacuna enorme da qual fico impossibilitado de esquecer totalmente... ainda mais quando relembro do fato. tive de frequentar analistas por anos, nada funcionou. me sinto um adolescente de novo querendo fazer tudo mais uma vez da mesma forma. ela me fez sentir vivo, me deu vitalidade. a liberdade do ser dela foi um exemplo pra mim.
não tenho raiva. só tenho curiosidade, como um ser tão belo pôde ter sumido assim... tão bruscamente, um ser tão belo que tinha muito a acrescentar. se eu pudesse ter tido a chance de pelo menos um adeus, um último beijo, uma última transa. ela via a vida de forma diferente e buscou acreditar nestas diferenças, isso é o que é mais cativante. eu sou grato, falando honestamente. eu vivi um amor de perder a cabeça e de inquietação. restaram-me estas fitas das quais eu guardo como tesouros, tipo aqueles quadros mais valiosos e visados em galerias de arte pelo mundo.
ela partiu... mas a imagem dela em mim continua intacta e viva percorrendo em todos os ônibus desta cidade em que eu costumo passear pra pensar na vida. se ela não tivesse sumido aquela época, ela sumiria depois, ela não era mulher de viver apenas uma vida, uma experiência. a irreverência dela continua pelos cantos e pelos ares deste mundo, talvez outras pessoas passaram pelo o que eu passei. porém, acredito que ela enfim encontrou a sua liberdade de ser.
onde quer que esteja, eu me lembro de você, menina.